Institucional

29.08.2025
VOCAÇÃO: DOM DA ETERNIDADE
A palavra vocação, como bem se sabe, tem sua origem no latim vocatio, derivada do verbo vocare, que significa “chamar”. Em seu sentido mais profundo, a vocação não se reduz a uma simples aptidão ou predisposição para executar uma tarefa ou profissão. Aptidão e talento dizem respeito às capacidades naturais ou adquiridas que habilitam alguém para determinada função, enquanto vocação é um chamado que ultrapassa a esfera técnica e pragmática da vida. Por isso, não é correto restringir o sentido de vocação a uma escolha de carreira ou a um desempenho profissional, tampouco compreendê-la meramente no campo das habilidades humanas. O chamado da vocação é sempre interpessoal, parte de um “Alguém” que chama e de um “alguém” que responde — e, no contexto cristão, trata-se de um diálogo vivo entre Deus e a pessoa. Desse modo, o conceito de vocação adquire um caráter essencialmente relacional e espiritual, que não pode ser confundido com interesses, gostos ou competências.
Essa relação pessoal com Deus, que constitui a vocação, não começa no momento em que tomamos consciência de nossa fé ou fazemos nossas escolhas; ela precede a própria existência. Santo Afonso Maria de Ligório (cf. Liturgia das Horas, vol. IV, p. 1142) recorda que Deus nos amou desde toda a eternidade, ainda quando éramos apenas possibilidade de ser. Antes que o mundo existisse, já éramos conhecidos e queridos por Ele, que nos preparava como obra de seu amor. Esse amor eterno não se limitou a nos conceder dons criados — como alma, corpo e o mundo que nos cerca —, mas chegou ao extremo de nos dar a Si mesmo, enviando o Filho para que tivéssemos vida e graça. Assim, a vocação não nasce de um impulso humano nem de uma construção social, mas de uma eleição divina inscrita na eternidade, na qual cada vida é fruto de um amor anterior ao tempo e mais profundo que qualquer merecimento humano.
Nas palavras do profeta Jeremias — “Antes que eu te formasse no seio de tua mãe, eu te conheci, antes que saíres do ventre, eu te consagrei” (Jr 1,5) — encontramos a expressão mais clara de que a vocação antecede qualquer mérito, escolha ou mesmo consciência de si. A primeira vocação do homem é o próprio dom da vida, chamado que inaugura a existência e a coloca sob o olhar e o cuidado de Deus. A essa se une a vocação à verdade, inscrita no coração humano como sede permanente de sentido. Santo Agostinho traduz essa inquietude ontológica, em sua celebre frase, ao afirmar, nas Confissões (I, 1, 1): “nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em Vós”. Assim, a vocação é mais do que uma missão futura: é uma realidade presente que estrutura a existência desde o início, pois viver já é responder a um chamado divino que busca plenitude na verdade que é Deus mesmo.
No concreto da vida cristã, essa vocação universal encontra sua expressão mais visível e exigente no batismo, que não apenas insere o homem na comunhão da Igreja, mas também o envia a viver segundo a lógica do Evangelho. A partir desse sacramento, cada pessoa é convocada a discernir um estado de vida — matrimônio, vida consagrada, ministério ordenado ou outra forma legítima de doação — como resposta concreta à pergunta sobre o sentido da própria existência. Essa escolha não se reduz a um plano individual de realização, mas é participação no desígnio de Deus que nos lança como dom caritativo aos outros, concedendo-nos graças específicas para que, como pessoa humana, possamos realizar “o melhor do ser possível” (Bernabé e Hugo, 2022, p.127) como ser destinado à eternidade. Assim, a vocação não é um peso, mas um dom que transforma a vida numa resposta amorosa, configurando-a progressivamente àquele que chama, até que, ao fim, todo o percurso da existência se revele como um único e grande “sim” a Deus e o compromisso fiel, amparado pela graça divina, de viver em conformidade a ele.
Em última análise, a vocação pode ser compreendida como um movimento contínuo de atração — não no sentido coercitivo, mas como aquela força amorosa e livre que Deus exerce sobre o coração humano. O profeta Jeremias expressa essa experiência em palavras que atravessam os séculos: “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir!” (Jr 20,7). Tal “sedução” não é um engano ou ilusão, mas um fascínio verdadeiro, capaz de mover a liberdade sem violentá-la, porque nasce do Amor que nos chama pelo nome. Bento XVI, na encíclica Spe Salvi, recorda que, no centro da fé, “não está uma ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (2007, n. 4). Esse encontro é a fonte dessa atração irresistível, pela qual Deus não apenas convida, mas nos torna capazes de desejar o que Ele é em Si e, por consequência, o que Ele sonha para nós. Viver a vocação, portanto, é entregar-se a essa atração até que ela configure todo o nosso ser, transformando-o no reflexo daquele que, desde a eternidade, nos chamou e nos seduziu para Si.
Frei Matiel de Oliveira Bernabé, OFM.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução de J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 28. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015. (Coleção Pensamento Humano).
BENTO XVI, Papa. Spe Salvi. Carta encíclica sobre a esperança cristã. 30 nov. 2007. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi.html. Acesso em: 10 ago. 2025.
BERNABÉ, Matiel de Oliveira; HUGO, Victor. Ética do cuidado e alteridade na sociedade do cansaço de Byung-Chul Han. Aurora, Marília, v. 15, n. 1, p. 115-130, jan./jun. 2022. DOI: 10.36311/1982-8004.2022.v15.n1.p115-130.
BÍBLIA. Sagrada – Tradução Oficial da CNBB. 6. ed. Brasília, DF: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, 2022.
LITURGIA DAS HORAS. Tradução para o Brasil da Segunda edição típica. Vol. IV. São Paulo, SP: Editora Vozes; Paulinas; Paulus; Ave-Maria, 1999.