Institucional
04.04.2018
Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil
MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2016, 140 x 210mm, 214 p. – ISBN 978-85-62027-85-7.
No alto da capa da obra consta esta trágica afirmação: “Em todos os lugares do mundo, todos os dias, mulheres são vítimas de assassinatos pelo simples fato de serem mulheres”.
A autora da obra é Juíza do I Juizado da cidade do Rio de Janeiro. É uma pioneira na provocação desse debate nos movimentos de mulheres de nosso país, na elaboração de propostas e na promoção de seminários no âmbito da Escola de Magistratura e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Este, foi um dos primeiros Estados a contar com esses Juizados e neles, desde o início, se destacou o protagonismo da Dra. Adriana. A obra em apreço é o resultado de uma meticulosa pesquisa de Doutorado em Direito Público no campo da Sociologia do Direito, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2015 e submetida ao tribunal de tese na cidade de Barcelona, em 10 de dezembro, na Faculdade de Direito da Universidade daquela cidade. Uma importante bibliografia de 8 páginas consta no final da obra. “A sólida formação acadêmica da Dra. Adriana permitiu que aprofundasse a compreensão sobre as questões sociais e culturais que estão na origem dessa forma mais grave dessa violência – os assassinatos de mulheres por razão de gênero.
De fato, dados recentes do Mapa da Violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil, produzido pela Flacso [Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais], ONU Mulheres, OPS/OM e a Secretaria de Políticas para as Mulheres, revelam a magnitude desses homicídios ao indicar que 50,3% das mortes violentas de mulheres são cometidas por familiares e 32,2%, por parceiros e ex-parceiros, o que demonstra a ‘domesticidade’ desses crimes”, afirma Leila Linhares Barsted, autora da Apresentação, p. IX.
A reportagem de O Globo confirma essa situação: “A vendedora Paula Regina Santos, de 39 anos, após agressões, criou a plataforma HelpHer (www.helper.com), um assistente virtual para ajudar outras vítimas. Chegou a apanhar por 40 minutos debaixo do chuveiro, o que a fez mudar de cidade, em Mato Grosso. Só assim conseguiria escapar das agressões que vinha recebendo do ex-marido. Em 2016, mais de 205 mil processos envolvendo ameaça, lesão corporal, sofrimento sexual e psicológico, dano moral e patrimonial chegaram aos tribunais’’ (O Globo, 27/08/2017, p. 10). “Em Roraima, Estado com o maior índice de morte violenta de mulheres no Brasil – taxa de 11,14 homicídios por 100 mil habitantes –, a professora Thaíse Campos, de 39 anos, fez 15 boletins contra o ex-marido e só depois de tanto apelar conseguiu que a Justiça determinasse que ele não entrasse mais no Estado. Ainda assim, ela se sente em insegurança. O agressor frequentemente descumpre as regras de afastamento e Thaíse precisa se esconder com ajuda de amigos” (ibid., p. 11). “Há duas semanas, a manicure Geisa Feitosa entrou para a triste estatística de mortas pelos ex-companheiros. Na frente das duas filhas, numa discussão, o homem sacou a arma e a matou com dois tiros” (ibid.). O Globo de 29/08/2017, p. 21, publica uma nova reportagem relatando a dor e o testemunho de outra mulher estuprada em Uber, expondo a vulnerabilidade feminina em espaços públicos e privados. “De acordo com o Mapa da Violência 2012, o Brasil está entre os países que mais matam mulheres no mundo. No Rio, em média, cinco mulheres são ameaçadas a cada hora. Na maioria dos casos, os acusados são companheiros e ex-companheiros das vítimas. Segundo ISP, 58,6% das ameaças registradas contra mulheres ocorreram em contexto de violência doméstica e familiar” (Ibid.).
Voltando à obra de Adriana Ramos de Mello, “ela é escrita por uma juíza que se confrontou com essa forma de violência não por meio, inicialmente, da leitura de livros ou devido à participação em pesquisas – que é a forma como costumamos nos aproximar de uma temática no meio acadêmico –, mas sim, pelo seu árduo e, muitas vezes, frustrante trabalho de magistrada, que se depara com mulheres vítimas de violência. A autora escutou seus relatos, muitas vezes pensou e decidiu ‘por elas’. E essa experiência a fez confrontar-se com aquilo que as diversas teorias feministas do direito denominam de ’invisibilidade da violência’ e de ‘negação de direitos’, que ocorre por força da atuação de uma série de mecanismos complexos de tutela de valores machistas, que marcam o desenvolvimento de nossas sociedades patriarcais. O nosso sistema de justiça não se subtrai a essa realidade, ao contrário, é local de produção e reprodução da discriminação da mulher, conforme é comprovado pela extensa literatura especializada.
Por isso, o interesse da autora pelo tema se entrelaça com a sua própria carreira profissional, tal como ela nos relata na introdução deste livro. Mas este entrelaçamento entre a pesquisadora e a operadora do direito permitiu que ela desenvolvesse uma ‘peculiar’ sensibilidade aos problemas relativos à violência contra a mulher e, certamente, foi a práxis que levou a autora ao meio acadêmico” (Ana Lúcia Sabadell, professora da UFRJ, e Encarna Bodelón, professora da Universidade Autônoma de Barcelona, Prefácio, p. XI-XII).
Um acontecimento, muito trágico, que ocorreu no México no século passado contribuiu para dar maior visibilidade à problemática da violência contra as mulheres. “O massacre de mulheres (incluindo adolescentes, meninas e até bebês) que ocorreu na cidade de Juarez, no México, no final do século passado, contribuiu para o profícuo desenvolvimento de um debate sobre o feminicídio na América Latina e as feministas latinas se ocuparam intensamente da questão. A condenação na Corte interamericana de direitos humanos do México também contribuiu para tirar da invisibilidade esse grave problema social” (ibid., p. XIV). Mas, a Dra. Adriana explica por que e como surgiu o interesse pelo estudo da violência contra a mulher: “Em meados de 2001, fui promovida para a Comarca de Duque de Caxias, Município mais populoso da Baixada Fluminense. Ali, um fenômeno começou a se impor, cada vez mais, à minha atenção: grande parte dos casos que chegavam aos Juizados Especiais Criminais estava relacionada à violência contra a mulher. A bem da verdade, a maioria da minha demanda – quase 70% dela – era de crimes contra a mulher. Não pude ficar alheia a esse fato … Isso começou a me incomodar muito, a ponto de sentir-me compelida, por solidariedade a essas mulheres, a tomar uma providência. Era necessária, segundo me parecia, uma estrutura que desse a elas um sentimento de segurança ao procurarem o Poder Judiciário. Sem uma estrutura desse tipo, a força do agressor sobre suas vidas sempre seria mais presente do que a autoridade do Estado, mantendo-as reféns. Em parceria com a Prefeitura de Duque de Caxias e com a Unigranrio, consegui começar a estabelecer uma estrutura de atendimento à mulher, que gerou o NAJUR – Núcleo de Atendimento Jurídico e Psicossocial do Juizado Especial Criminal. Formamos um convênio com a Unigranrio concernindo ao atendimento jurídico e a Prefeitura ajudou com uma assistente social e uma psicóloga. Fazíamos trabalho psicossocial junto a essas mulheres, oferecendo a elas uma escuta atenta à singularidade de cada caso. Assim, podíamos dar a cada uma a sensação de acolhimento e segurança indispensável para que suas angústias e necessidades fossem expressas” (p. 5).
A obra, baseada numa sólida bibliografia de 8 páginas, consta de 7 capítulos. 1. Os conceitos de feminicídio e femicídio. Os conceitos sociológicos e antropológicos de femininicídio e femicídio: impunidade e responsabilidade do Estado. Uma análise dos conceitos existentes. 2. Marco normativo internacional e feminicídio/femicídio. Direito internacional dos direitos humanos das mulheres. Caso Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil. “O debate estimulado pela Lei Maria da Penha permitiu a emergência de um tema pouco tratado pelo Poder Judiciário, e abriu possibilidade para que a sociedade brasileira, juntamente com o Poder Público, discutisse os mecanismos mais eficazes de combater ‘a violência contra a a mulher’, e encontrassem na expressão ‘violência doméstica e familiar contra a mulher’ uma forma de demarcar o espaço onde ocorre a dinâmica da violência, explicitando, assim, o ‘sujeito ativo’ e o ‘sujeito passivo’ da relação violenta” (p. 99). 3. A tipificação do feminicídio/femicídio em países latino-americanos: Costa Rica, Guatemala, México, Chile, Peru, Argentina. 4. A violência contra as mulheres no Brasil. Reflexões sobre o processo histórico da violência contra a mulher no Brasil no período colonial. O movimento feminista do fim do século XIX e começo do século XX. 5. A lei Maria da Penha. O debate estimulado pela Lei Maria da Penha permitiu a emergência de um tema pouco tratado pelo Poder Judiciário, e abriu possibilidade para que a sociedade brasileira, juntamente com o Poder Público, discutisse os mecanismos mais eficazes de “combate à violência contra a mulher”, e encontrassem na expressão “violência doméstica e familiar contra a mulher” uma forma de demarcar o espaço onde ocorre a dinâmica da violência, explicitando, assim, o “sujeito ativo” e o “sujeito passivo” da relação violenta. A gravidade da violência contra a mulher no Brasil atual. 6. O feminicídio no Brasil. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher. 7. Análise de processos relativos a homicídios de mulheres no Rio de Janeiro, no período entre 2000 e 2010. Os casos de inconformismo, os casos de briga e estupro. Quem são as vítimas. Quem são os réus. As vítimas e os réus.
Conclusão: “Por fim, com este trabalho, esperamos contribuir ao empoderamento jurídico das mulheres e ajudar a assentar as bases da discussão sobre o feminicídio no Brasil e no mundo, registrando o que até aqui teve que ser discutido, e o tom para as discussões futuras. Afinal, apenas agora começa a aparecer essa nova palavra que, através das instituições, começa a ecoar para a sociedade em geral. Na medida em que, sendo reconhecida pelo Direito, a figura do feminicídio começa a aparecer na mídia, no debate público etc., passará a fazer parte do uso cotidiano da língua e, assim, do mundo compartilhado. Esse é, como já ressaltamos, em muitos sentidos, o começo de uma discussão, e não seu fim” (p. 188).
Lei Maria da Penha: A Lei 11.340/06, conhecida com Lei Maria da Penha, ganhou este nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, que, por vinte anos, lutou para ver seu agressor preso. Maria da Penha é cearense, e foi casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros. Em 1983, ela sofreu a primeira tentativa de assassinato, quando levou um tiro nas costas enquanto dormia. Viveros foi encontrado na cozinha, gritando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes. Desta primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica A segunda tentativa de homicídio aconteceu meses depois, quando Viveros empurrou Maria da Penha da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. Apesar de a investigação ter começado em junho do mesmo ano, a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro do ano seguinte e o primeiro julgamento só aconteceu 8 anos após os crimes. Em 1991, os advogados de Viveros conseguiram anular o julgamento. Já em 1996, Viveros foi julgado culpado e condenado a dez anos de reclusão, mas conseguiu recorrer. Mesmo após 15 anos de luta e pressões internacionais, a Justiça brasileira ainda não havia dado decisão ao caso, nem justificativa para a demora. Com a ajuda de ONGs, Maria da Penha conseguiu enviar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica. Viveros só foi preso em 2002, para cumprir apenas dois anos de prisão. O processo da OEA também condenou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica. Uma das punições foi a recomendação para que fosse criada uma legislação adequada a esse tipo de violência. E esta foi a sementinha para a criação da lei. Um conjunto de entidades então reuniu-se para definir um anteprojeto de lei definindo formas de violência doméstica e familiar contra as mulheres, estabelecendo mecanismos para prevenir e reduzir este tipo de violência, como também prestar assistência às vítimas. Em setembro de 2006 a lei 11.340/06 finalmente entra em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher deixe de ser tratada como um crime de menos potencial ofensivo. A lei também acaba com as penas pagas em cestas básicas ou multas, além de englobar, além da violência física e sexual, também a violência psicológica, a violência patrimonial e o assédio moral (Fonte: Google; acesso em: 29 ago. 2017).
Alino Lorenzon